miércoles, 25 de julio de 2018

Col de Mente: Tragédia e reviravolta no Tour de France 1971


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Como anunciei ontem, divido com vocês uma das grandes histórias do ciclismo mundial. E ela faz ainda mais sentido após vermos o ‘passeio ciclístico’ que os líderes das equipes proporcionaram nesta edição de 2018.

Preparem-se, pois é textão dos grandes!

O AMBIENTE – Em 1971, Eddy Merckx já era um campeão de exceção. Aos 26 anos de idade, o Canibal já tinha vencido duas vezes o Tour de France, duas vezes o Giro d’Italia (um doublé), um campeonato mundial profissional, três Paris-Nice, um Tour de Romandie, um Dauphiné Libéré, uma Volta a Catalunya, quatro Milano-San Remo, um Ronde van Vlaanderen, duas Paris-Roubaix, duas Liège-Bastogne-Liège e um Giro di Lombardia.

Repito: aos 26 anos de idade.

E Eddy veio para o Tour de France como um favorito mais que absoluto, afinal ele era Eddy Merckx e tinha acabado de vencer o Dauphiné.

E os seus rivais? Dizia-se na época, que ele era tão superior que a maioria simplesmente se rendia e preferia brigar pelo segundo lugar. O mais famoso entre os campeões que afinavam para Merckx foi Joop Zoetemelk (holandês que venceu o Tour 1980, a Vuelta 1979, entre várias outras belas vitórias).

Dizem os artigos da época, que Joop preferia não puxar à caça de Eddy, o que enfurecia outros campeões que não se rendiam ao Canibal.

Dentre os rivais de Merckx, dois deles se destacaram: o belga Roger de Vlaeminck (nas Clássicas) e o espanhol Luis Ocaña (nas Voltas). Motivo: para esses dois gigantes, Merckx não era rival. Era inimigo. Nunca aceitaram passivamente a dominação do belga.

LUIS OCAÑA – como o assunto deste post é um col do Tour de France, é sobre Ocaña que trataremos.

Nascido no mesmo ano que Merckx, em 1945, Don Luis se profissionalizou mais tarde: em 1968, contra 1965 de Eddy. E o espanhol já chegou fazendo estrago: campeão espanhol (1968), 2º da Vuelta a España (1969) e três vitórias de etapas, entre outras provas.

Em 1970, já mais habituado ao métier profissional e 25 anos de idade incompletos, Luis Ocaña venceu a sua Vuelta e o Dauphiné Libéré. A mídia especializada elegeria o espanhol como o único ciclista capaz de bater Merckx.

E Ocaña acreditou na mídia. Sempre dava declarações polêmicas, sendo a sua favorita: “Eu não aceito a supremacia de Eddy Merckx e mostrarei isso na estrada”.

Agora uma pausa para entender a cabeça de Luis: o espanhol mudou-se para a França quando tinha apenas 14 anos de idade. Ele cresceu sendo rejeitado, visto como um imigrante pobre que trabalhava na lavoura francesa.

Quando se profissionalizou e passou a correr em provas espanholas, seu sotaque afrancesado era motivo de piadas. E na França ele era conhecido como “o espanhol de Mont de Marsan”. Ou seja, não estava nem lá nem cá.

O TOUR 1971 – Luis Ocaña iniciou a temporada em fanfarra: vitórias na Volta a Catalunya e na Vuelta al Pais Basco.

De qualquer forma, a imensa maioria dos analistas e fãs previam que Ocaña viria ao Tour para brigar pelo 2º lugar, contra as feras da época, como Poulidor, Van Impe, Zoetemelk e Thevenet. Afinal, o belga havia batido o espanhol na Paris-Nice e no Dauphiné Libéré.

Da sua parte, Luis repetia como um robô: “Estou forte, estou pronto para derrotar Merckx”.

Bom, veio o Tour de France e a primeira etapa seria um CRE. A Molteni de Merckx colocou 52” na BIC (sim, a da caneta) de Ocaña. Mais um Maillot Jaune para Eddy.

E na 2ª etapa (que de fato era a 5ª, pois haviam demi-étapes) o Canibal venceu de novo. Alguma dúvida de quem venceria o 58º Tour de France?

Veio a 8ª etapa, com chegada no alto do lendário (e aposentado) Puy de Dôme. Faltando 5 km para a chegada, Ocaña ataca com ferocidade nunca vista. Eddy arranca atrás, mas não consegue pegar sua roda. A etapa viraria uma perseguição individual entre o rei e o autoproclamado desafiante.

Ao final, no meio da neblina, Ocaña irrompe vencedor e coloca 15” em Merckx. “Só isso?” dirá alguém. E eu digo: “Tudo isso”, afinal foi a primeira vez que Eddy fora atacado frontalmente por um rival e tomou tempo. Usando emprestado a terminologia do boxe, não fora um nocaute, mas o belga perdeu por pontos aquele assalto.

Ocaña estava enlouquecido de orgulho!

Duas etapas depois, Merckx furou, Ocaña atacou de novo e colocou mais 1’40” em cima do Canibal. O Maillot Jaune iria para Zoetemelk. Curiosamente, não encontrei textos questionando se Ocaña teria sido antiético ao atacar o líder em dificuldade.

Enfim, estavam todos embolados na Geral e ninguém poderia imaginar Rei Eddy em dificuldade nas etapas que se seguiriam.

Mas chegara a épica etapa Grenoble-Orcières Merlette. Era a 11ª de um Tour que teria 22 etapas e 3,6 mil km de percurso – considerado curto para os padrões da época.

Com apenas 134 km, a ordem era atacar de bandeirada. Mas naqueles tempos, os ataques não vinham de gregários em busca de publicidade. O português Joaquim Agostinho (maior ciclista de língua portuguesa da história) atacou, depois o grande escalador espanhol José Maria Fuente também atacou.

A etapa tornou-se puro caos, com as estrelas se atacando mutuamente. E com apenas 20 km percorridos, Luis Ocaña decidiu fazer o impossível: atacou para vencer.

Muito marcado, o espanhol logo viu Van Impe e Zoetemelk na sua roda. E Merckx? O Canibal novamente não conseguia pegar a roda de Luis e sofria como um cão em sua perseguição.

Não demorou muito e Van Impe e Zoetemelk seriam ‘expulsos’ da roda de Ocaña, que pedalava como se estivesse possuído. Um jornalista espanhol escreveu: “Ocaña era pura magia”. E a diferença ia subindo: 1’, 3’, 5’ ... e ao final Luis Ocaña cruzaria a linha de chegada com 8’42” de vantagem sobre Eddy Merckx. IMPENSÁVEL !! INACREDITÁVEL !!

A humilhação do belga seria tão grande, que quando Eddy cruzou a linha de chegada Ocaña já tinha vestido o Maillot Jaune e descido do pódio.

O ritmo imposto pelo espanhol foi tão absurdo, que 67 ciclistas chegaram fora do horário de corte, forçando a direção do Tour abrir uma exceção. Do contrário, apenas 39 ciclistas continuariam na prova. Nunca visto!

Entrevistado, Merckx diria: “Ocaña nos matou a todos, como o toureiro El Cordobes faz nas touradas”. Tour de France encerrado? Não quando Eddy Merckx estava na prova.

Viria o único dia de descanso deste mágico Tour 1971 e no dia seguinte teríamos uma etapa-maratona de 251 km, entre Orcières Merlette e Marseille. Ou seja, do alto dos Alpes até a praia. Descida, descida e mais descida.

Eddy estava com más intenções. Estranhamente, colocou todos os seus gregários na primeira fila antes da largada. Ocaña e a sua BIC sequer perceberam. E, detalhista como sempre foi, o belga procurou Luis e o viu dando uma entrevista no fundo do bloco.

Batata! Tiro de partida e Eddy Merckx atacou DE BANDEIRADA junto com seus Moltenis. Repito, era uma etapa de 251 km. Deu pra entender? Até hoje me arrepio ao reviver este momento espetacular do ciclismo.

Loucura total. Uma deliciosa loucura. Eddy conseguiu seu intento, colocando perto de 3’ em Ocaña, que liderou a perseguição durante toda esta interminável etapa. O espanhol declarou ao final do dia estar furioso e que o belga fora antiético. Dizem que Merckx não respeitou sequer o trecho neutro ainda dentro da cidade.

Merckx, que não tinha gostado de ser atacado quando furou, dias antes, parecia gostar de ver seu rival desestabilizado.

Guerra de palavras duras na mídia.

Chegava o bloco montanhoso dos Pirineus e um surpreendente e possuído espanhol tinha indecentes 7’21” de vantagem sobre o Canibal. E Merckx não parecia ser capaz de tirar seus coelhos da cartola: num CRI de 16,3 km o belga colocou apenas 19” no espanhol.

Com o Tour nas mãos e pernas de Luis Ocaña, chegaria a etapa Revel-Luchon. Sim, e nela havia a travessia pelo Col de Mente. Nada de especial, apenas mais um col duro para aqueles tempos de bicicletas pesadas e relação de marchas inacreditável para os tempos atuais.

Sabemos que o clima nas montanhas é volátil e neste dia São Pedro prometia castigar os corpos já surrados dos campeões. Uma chuva forte começava a se forma no horizonte.

As hostilidades começaram no lamentavelmente marcado Col du Portet d’Aspet, onde morreria Fabio Casartelli, no Tour 1995. Aí veio o Col de Mente e São Pedro lançou um dilúvio sobre a montanha. Disposto a quebrar Ocaña, Merckx atacou e atacou!

A cada arrancada do Canibal, o espanhol de Cuenca (ou francês de Mont de Marsan?) pulava em sua roda e nada parecia fazê-lo desgrudar de Merckx.

Vem a descida, cheia de zigue-zagues, e curvas em formato de ferradura. Merckx, que descia muito bem, lançava mais um ataque voraz, sempre pensando em quebrar Ocaña psicologicamente.

Até que numa dessas curvas fechadas, um verdadeiro rio de lama atravessava a estrada, vindo da parte mais alta, e o pior acontece: Eddy perde o controle da bicicleta e cai. Como é normal nessas horas, quem persegue cegamente a roda da frente acaba se dando mal.

O pobre Maillot Jaune segue Merckx, mas cai de forma mais bruta e choca suas costas contra uma pedra. Ocaña geme de dor e tem dificuldade para soltar seus pés do firma-pé. Numa fração de segundo, debaixo de chuva torrencial, Joop Zoetemelk segue a mesma trilha e choca-se frontalmente com Ocanã. Uma fatalidade.

Em seguida, Agostinho e o espanhol Vicente Lopez-Carril fazem o mesmo, saindo da estrada em caindo por cima de Ocaña e dos torcedores que o acudiam. Um absurdo!

Eram tempos sem protocolos para clima ruim. Todos, um a um, se levantam e saem à perseguição de Merckx e Fuentes, que já estava bem à frente e não caiu naquela curva.

Ocaña não conseguia se levantar e chorava copiosamente, com o seu reluzente Maillot Jaune encharcado, sujo, rasgado. Era muito drama para um ciclista só. Para uma corrida só. Era o fim do Tour 1971 para o espanhol de Mont de Marsan.

Um helicóptero viria para resgata-lo. Afinal, todos temiam que ele tivesse o mesmo triste destino de Roger Rivière, jovem campeão francês que ficara paraplégico após uma queda brutal no Tour 1960. Felizmente, Ocaña não sofrera qualquer fratura.

MALDADE DO DESTINO – apenas dois dias depois, o pelotão largaria de Mont de Marsan para a 17ª etapa. A cidade estava em festa, já que seu filho adotivo estaria lá vestido com o manto sagrado do Maillot Jaune. Ao invés disso, tivemos quase um luto.

MERCKX E A ÉTICA – apesar da antipatia recíproca, Eddy foi visita-lo em casa, tiraram fotos e prometeram se enfrentar em outras Voltas. Mas Ocaña continuou caindo e caindo, nunca se tornando um verdadeiro rival para o deus belga do ciclismo mundial.

De qualquer forma, Merckx deu prova da sua hombridade como ciclista e recusou-se a subir ao pódio na etapa trágica do Col de Mente. Mais que isso, disse que não usaria o Maillot Jaune pelo resto do Tour, pois ele pertenceria a Ocaña e não a ele Merckx.

Precisou-se de alguns dias para a organização do Tour conseguir convencê-lo a vestir a camisa de líder da prova.

OS PRÓXIMOS ANOS – Todos sabemos o festival de vitória de Merckx, mas nem todos conhecem a trajetória de Don Luis.

Em 1973, Merckx resolveu correr a Vuelta e o Giro. As duas provas aconteciam quase que em sequência e Eddy candidatou-se a tentar este doublé insano. Ele nunca tinha corrido a Vuelta e acreditava que não poderia ter esta lacuna em seu palmarés. No caso do Giro, ele era praticamente obrigado a correr, pois a sua Molteni era uma empresa italiana.

Mera formalidade, Merckx venceu o demoníaco doublé Vuelta-Giro, pedalando 6 semanas com apenas uma que separava as duas provas.

Sem o Canibal na largada do Tour de France, todos se perguntavam quem herdaria o Maillot Jaune, que há 4 edições seguidas era dominado pelo belga. Mas logo aprendemos que o herdeiro poderia ser apenas um: Luis Ocaña.

O espanhol da BIC (ex-equipe de Jacques Anquetil) correu como Merckx e dominou a prova de forma raramente vista: ele venceu a Geral, o prêmio da Combatividade e 6 etapas. O segundo colocado, Bernard Thevenet, ficou a 15’51”. Uma eternidade.

E quando todos esperavam um grande duelo entre Merckx e Ocaña, já em 1974, o destino continuou maltratando o campeão espanhol. Foram quedas, lesões, problemas psicológicos e nada dos resultados que todos esperavam.

Em 1977, com 32 anos de idade, Luis Ocaña pendurava as sapatilhas após muito sofrer pelas estradas do ciclismo mundial.

Dizemos que Ocaña tinha uma verdadeira obsessão por Merckx. Tinha imensa rivalidade, mas que não era saudável. Para seus interlocutores mais próximos, ele tratava o belga com “El puto Merckx”.

Mas não era por ódio. Era uma espécie de reconhecimento da superioridade intransponível de Eddy. Numa passagem divertida, Luis batizou um dos seus cachorros com um nome pouco comum: Eddy Merckx.

Numa das revistas que tenho, ele brinca com o jornalista dizendo: “Foi a forma que eu encontrei para dominar Eddy Merckx. Agora eu mando ele rolar e ele rola, jogo uma vareta e ele vai busca-lo. Eddy Merckx me obedece”. E ria num misto de alegria e profunda frustração.

Pouco tempo depois, em 1994, Ocaña tiraria a própria vida com um tiro de revólver. Relatos dão conta que ele sofria de grave depressão, motivada pela falência dos seus negócios e graves doenças (falavam em Hepatite C e câncer).

Ocaña morreu como viveu. Cercado de drama. Meus respeitos a este grande campeão do ciclismo.

Por Fernando Blanco (c)

Fotos: 
(1) O ataque impiedoso de Merckx na etapa rumo a Marseille 
(2) Ocaña caído, ferido, batido no Col de Mente.


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